sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Criatividade #4


Levanto-me da cama e olho para o relógio. Já é tarde.
Junto a minha testa febril ao vidro da janela que me transporta directa para a Serra de Sintra, suposto refugio dos amantes, amantes como nós agora.
Acendo um cigarro silencioso, enquanto tu dormitas sobre o nosso depois.
Estou atrasada. Já é tarde.

Olho para o meu cenário e penso no grande nó que isto se tornou. Não me lembro de chegar aqui. Vinha inebriada por ti, diluída em ti, a querer-me abater sobre ti, desmesuradamente.
Cortinas de veludo sangue, cama redonda, alcatifa no chão, roupa espalhada por todo o lado e os últimos raios de sol a cobri-te as costas nuas, esculpidas à mão, apresentando as marcas do meu amor. Vejo-as daqui, finos vergões encarnados, e sorriu a meia haste, tu gostas e eu não consigo evitar.
Flashes de mim sobre ti, tu em todo lado, sobre todas as coisas, num momento de loucura temporária que não evitei, não quis e não consegui. Tenho medo deste desconhecido, deste terreno nunca antes pisado, medo do final, da ruptura, daquilo que fiz e da pessoa em que me tornei com um simples acto.

A minha consciência grita mais alto a cada metro que eu me afasto de ti, e continuo sem saber como é que vim aqui parar!

Já é tarde.
Começo a recolher a minha roupa do chão, tenho que me ir embora…

Abres os olhos para a tua parte favorita, enquanto eu tento juntar as ligas com as meias. Mas o meu corpo está já a entrar em ressaca de ti e as minhas mãos tremem imprecisas, tornando a tarefa demorada.
- Vem para aqui. Deixa isso.
Viro-me de costas para não te enfrentar, não te olhar nos olhos, o meu tom gela: “Não. Isto não vai voltar a acontecer”. Dor.
-Mas eu pensei...

Eu sei exactamente o que é que pensaste!
Sinto o sangue no antebraço a correr acelerado, coração na boca. Odeio-te. Odeio-te por teres estado anos sem saber, calado, entregue a outras pessoas, em outras moradas, por outros corpos. Odeio-te por me quereres agora, agora que eu não posso, agora, só agora.
Não enquanto éramos miúdos e brincávamos aos médicos, não enquanto passávamos noites a jogar Sega, não nas tarde que fingíamos que estudávamos, não enquanto fomos adolescentes e depois de termos experimentado tudo juntos pela primeira vez, não quando fomos morar para fora, não! Agora. Só agora é que percebeste o sentido que nós fazemos. Agora, que já não te consegues entregar a ninguém a não ser a mim, agora que não deixas ninguém entrar na tua vida porque ninguém é como eu, ninguém te conhece como eu, agora que não respiras e não vives sem mim, agora que é tarde demais…

O meu telefone acusa mensagem. Pegas nele com nojo e dizes com ar afectado: “Já dei de jantar às meninas. Estamos à tua espera. Beijinhos”.

Enfureces-me, tiro-te o telemóvel da mão violentamente, e corro para a porta. Preciso de não te ter aqui, preciso de pensar, preciso de parar e fugir. Não encontro a porta da saída, apesar dela estar a minha frente. O que é que eu fui fazer?
- Fica. Sabes que queres ficar comigo.
Nem sei o que te responder a isto. Mentir é muito pouco viável, basta olhares para mim para saberes que quero mesmo ficar, que contigo o mundo pará e nada mais importa.
- Não posso. Agora já não posso.
Sentaste calado na beira da cama, inclinas a cabeça e olhas-me nos olhos. Não podemos dizer mais nada, já passamos os limites que podíamos, já não nos conhecemos, não somos estas pessoas que os espelhos do tecto reflectem. Nós não fazemos traição, nunca fizemos...até hoje.

Acima de tudo fomos ingénuos. Pensámos que o meu papel assinado e reconhecido por entidades superiores iria impedir a sofreguidão do que fazíamos antigamente, que filhos e família eram barreiras intransponíveis à força de nós os dois juntos. E entramos, mais uma vez a juntar às tantas anteriores, pelo retorno dos melhores amigos, porque as coisas fazem mais sentido quando partilhamos a vida um com o outro, porque a tua relação, mais uma vez falhada tinha terminado e eu sou o teu eixo de sempre, porque tinham passado 4 anos desde a nossa ultima noite, perdidos de bêbedos no corpo um do outro a celebrar a minha despedida de solteira, e principalmente porque agora, era tudo diferente.
Ingénuos, tão ingénuos.

É tarde. Tenho as minhas filhas à espera em casa de um lado, e tu, o meu amor de sempre, sentado à espera do outro. E eu procuro a saída, aquela que me faça ultrapassar o amanha e o resto da vida. A saída impossível sem dor deste sitio perdido algures na Serra de Sintra, algures dentro de mim, algures...

Continuas a falar comigo calado, expectante pelo meu próximo passo, ansioso de mim, do meu corpo, do meu ser e de tudo o que eu te dou. Acredito até, algo confiante. Afinal, eu sempre voltei para ti.
- Não posso. Existem amores maiores do que o nosso. Não posso.

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