- Mãe, vou buscar o carro, pode ser? Está na hora de irmos embora. - Ouço o meu filho mais velho a dizer.
- Quando quiseres, querido.
Vejo-o a descer pela relva, entre as outras sepulturas.
- Demore o tempo que precisar. Mas vamos ter de ir embora. - Sorri.
Não sei como é que vou explicar ao meu filho que não me consigo mover. Que não imaginei a minha vida sem ti, fui apanhada desprevenida, e que estou sem chão, sem apoio, sem ajuda, sem nada.
Para ele tu sempre foste o tio mais porreiro, aquele miúdo grande com rugas, o que trazia sempre os jogos mais giros, que dava os presentes que os pais não achavam graça e que aparecia a qualquer hora, quando fosse preciso e mesmo senão fosse. Eras só o melhor amigo da mãe, o das muitas namoradas diferentes, que fazia a mãe rir, que falava à porta fechada quando os problemas eram sérios, e acalmava as discussões. Para ele eras só isso, uma parte da mobília da casa, que ele e os amigos adoravam, mas não davam importância demasiada.
Como é que eu lhe vou explicar que não posso sair daqui porque não sei viver sem ti. Que quando o pai dele morreu há 8 anos tu ficaste comigo, e o banco que éramos, eu, tu e o meu amor, aguentou-se só com duas pernas. Eu e tu, e agora?! Agora não sei o que fazer...
Aquilo que eu achei tantas e tantas vezes que era impossível aconteceu, eu mantive-te sempre comigo. Quando não conseguimos gostar um do outro, quando me apaixonei por ti e não deu, quando a amizade parecia impossível, quando conheci o que foi meu marido durante 40 anos, depois de casada, com os filhos, a tratar dos netos... Na minha vida cheia, e havia sempre espaço para ti, sempre tempo para uma conversa e mais um lugar à mesa.
O amor toma contornos que nunca vamos saber explicar. Eu amei-o durante todo o tempo que estivemos casados, nunca duvidei, nunca vacilei, nunca ponderei, e quando ele se foi embora a dor foi insuportável, tu viste, mas estavas comigo, e nada podia ser assim tão mau se tu te estivesses comigo.
Os fracos de espírito, mesquinhos, más línguas, os pequeninos seres que muitas vezes cruzavam a nossa vida diziam entre dentes que o nosso "caso" era visível, que o meu marido era "corno" e amigo do "amante da mulher"...lembraste o quanto nos riamos os 3 desses episódios? Dava galhofada para jantares inteiros quando os nosso reais amigos nos contavam mais uma triste cena do "diz que disse" que é a vida de tantas pessoas infelizes que não sabem o que é ter um amor, quanto mais dois. Vivem governados pela inveja, pelos padrões estereotipados do que deve ser vida e, como não conseguem compreender, julgam.
O caixão já desceu, tenho os olhos fixos onde tu estavas ainda agora e não consigo sair daqui. Como é que vou deixar-te, e ir-me embora? Como é que vou obrigar os meus pés a porem-se um em frente ao outro, virando-te costas para sempre?
Fui abençoada com pessoas maravilhosas na minha vida. Um marido que sempre compreendeu que eu não podia viver sem ti, que te aceitou desde o primeiro dia como fazendo parte de mim, e aprendeu a gostar de ti, porque se eu gostava tu eras de gostar. E um melhor amigo que, longe ou perto, esteve sempre aqui, mesmo nas horas impossíveis, independentemente de eu estar sozinha ou não, não interessava. Se rever bem, sei que as rugas que tenho à volta dos lábios (mais do que noutro sitio qualquer) são dos sorrisos e das gargalhadas que nunca deixei de dar. E tu estiveste cá em todas. E as lágrimas que patrocinaste (tantas também), são insignificante...na verdade, sempre foram. Ter-te comigo foi, e agora posso dizer com certeza, o que me fez ser o que sou hoje.
Talvez por isso eu não consiga ordenar ao meu corpo que saia daqui. Não sei como vai ser agora, daqui para a frente? Mesmo quando nos chateávamos eu sabia que podia voltar, e tu rias-te e dizias para eu não voltar a fazer, sabendo que mais tarde ou mais cedo eu, por medo, por rebeldia ou só porque era maluca, ia voltar a fazê-lo. Mas havia sempre uma maneira, uma possibilidade. E agora não há. Vou acordar amanha e tu não vais estar aqui, e depois de amanha também não, e assim, indefinidamente até eu ir ter com vocês. Dos meus dois amores sobrei eu, eu que sempre disse que queria ser a primeira. Não me deviam ter feito isto.
Vidro desce, o meu filho impacienta-se, tem onde estar e eu estou ainda aqui.
- Mãe, está a ficar frio. Vamos para casa, venha.
Não os queria tratar por você. Tu insistis-te. Eu estava errada, a confiança e a intimidade entre pais e filhos não é alterada pelo pronome que se usa. Acabou por ficar.
É final de Setembro, ele tem razão, está a ficar frio. Tenho que atravessar esta relva e deixar-te para trás. Só me apetece pensar que estás em casa à minha espera, sentado na sala com o tabuleiro das damas. Nós velhos, antes saiamos, íamos ao cinema, víamos coisas parvas, mas agora que as legendas vão ficando cada vez mais difíceis de ler, e o barulho cada vez mais difícil de suportar gostamos de damas. E eu sei que não devia, que devia encarar de frente que tu foste e não vais voltar, mas não consigo. Não hoje. Talvez amanha. Hoje estás em casa à minha espera, e vais passar o serão comigo a embirrar e a jogar às damas, dois velhos casmurros. Amanha logo se vê.
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