sábado, 23 de maio de 2020

Sonhos

Sonhei com o meu pai hoje, duas vezes, dois sonhos diferentes.

No primeiro tínhamos o tempo que nos foi roubado. Uma cena corriqueira do dia-a-dia, simplesmente ia dar-lhe boleia para ele ir trabalhar. Sabíamos que ele estava doente, mas tínhamos tempo para ir lutando e vivendo.

No segundo ele simplesmente me abraçou. Ele já tinha morrido mas estava sentado comigo num banco, eu dizia-lhe que não estava a aguentar sem ele. E ele abraçava-me, e eu sentia aquele quentinho de sempre, e ele dizia para eu me lembrar deste calor, que ele ia estar sempre aqui.

Quando acordei ainda o sentia. Voltar à realidade a partir dai foi como deixar o vaso cair no chão outra vez. Estilhaçar em 1000 bocadinhos o que momentaneamente tinha estado inteiro.
Escusado será dizer que o meu dia tem sido um buraco sem fundo, em que caiu e continuo a cair sem chegar a lugar algum (tipo Alice). Parece que a morte do meu pai é hoje (ainda mais) intransponível, como se realizasse mais ainda do que ontem que vou ter de viver um vida inteira sem ele. Pela primeira vez hoje pensei mesmo que não vou conseguir aguentar. Que para sempre é demasiado tempo, que o buraco é demasiado fundo, que as forças me faltam às vezes.
Como se hoje fosse mais que ontem, pior que ontem. Como se se repetisse pela primeira vez este sentimento de perda absoluta, infinita. Uma solidão esmagadora, abandono mesmo, um buraco que não pode fechar, porque não existe ninguém para o tapar, substituir.

Mas o dia passou, sentei-me no chão a brincar com o M. e deixei-o tomar conta de mim. Dizer-me o que fazer com os carrinhos, ajudar-me com os puzzles, dar-me xarope a fingir com o seu kit de médico. Viver um momento de cada vez e aguentar só mais este. Arrastar-me neste ano de 2020 e deixar o luto fazer-se como ele quiser. Sem forçar.
Quando acho que não aguento mais a realidade e emocionalmente não consigo gerir mais nada, pego num livro, vejo Friends ou saiu para correr, escapo-me daqui por tempo definido. Uma bolha de oxigénio temporária para poder aguentar mais um dia. Amanhã vai ser melhor.


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