É só pena demorar tanto tempo para perceber...
Antes de ir para Londres fui a casa da minha mãe buscar um guia que para lá andava e que me ia dar jeito na viagem. Arrumei umas coisas e acabei por olhar para a cómoda que está no meu quarto. Pus as mãos nos puxadores da gaveta onde guardava mil coisas, entre elas, registos de amor passados, testemunhas de papel, guardadas também debaixo de um forro de papel. Ali permanecia há anos o somatório de poucas cartas de amor que recebi, muitas mais as que enviei, escritas numa folha de rascunho para depois escrever novamente numa folha impecavelmente limpa, com letra bonita e cuidada. Eram muitos bilhetes trocados, mil cartas enviadas, muitos corações desenhados, muitas fotografias de homens a quem perdi o rasto, que não sei se efectivamente chegaram a transformar-se em boa gente ou se continuam centrados neles próprios, usando e abusando de quem cai na má sorte de os ver como pares.E à medida que me passavam nas mãos cada vez mais provas do passado, como quem desfaz um baralho de cartas, vi amores antigos, frases intermináveis e sorrisos desmedidos nas fotos a dois. Recuei no tempo. Parei, tirei do ombro a mala que me pesava e eu que me preparava para sair, puxei de um caixote de lixo para perto de mim, assumi uma posição confortável - ia estar ali uns minutos - retirei tudo de cada envelope e li na diagonal o que um dia tinha escrito. Li algumas daquelas linhas intermináveis, algumas desesperadas, os "gosto de ti" repetidos, a exposição do meu íntimo.O meu primeiro pensamento, ao ler frases avulsas de muitas daquelas cartas foi: "como pude ser tão estúpida?". Suspirei e rasguei. Raguei sem dó nem piedade dezenas de cartas, papéis amarelados pelo tempo, fotografias, dividindo cada par, deixando-me a mim e a outro homem cada um numa metade da fotografia, e atirei tudo para o caixote de lixo ao meus pés. Rasguei sem olhar para trás com saudade, umas atrás das outras, apenas com pena de ter sido tão estúpida. Como fui tão burra um dia? Rasguei as folhas em quatro, oito, mil metades, umas atrás das outras, algumas vezes constrangida, não acreditanto o longe que a esperança me tinha levado, atirando por terra o orgulho, a auto-estima, os valores e os princípios, esforçando-me tanto por agradar que deixava de ser eu mesma e, por isso, incapaz de fazer resultar qualquer relação.Diz-me um amigo que a rúbrica "Consultório" não deveria dar-me assim tanto trabalho, pois poderia criar uma resposta modelo que serviria para a maioria das mensagens que recebo. Então ela aqui fica: quando um homem age como se não gostasse de nós, é porque não gosta mesmo. Não é porque tem traumas, porque está ocupado, porque tem uma vida difícil. É mesmo porque não gosta de nós. Todas as cartas que rasguei mostravam isso mesmo.
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