segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Para lá da compreensão

O M. não consegue perceber o que aconteceu ao avô.

Eu expliquei que ele morreu, expliquei o que é morrer, o que é que fisicamente isso quer dizer e ele não percebe o conceito. Depois de muito lutar contra dizer as coisas comuns em que eu não acredito, aceitei dizer que ele tinha ido para ao céu. Nonsense, o avô não tem asas mamã.

Hoje queria que ele voltasse para casa, a tia M. estava com saudades dele e ele tinha de voltar para casa. E eu bem lhe dizia que o avô estava bem, onde quer que estivesse e ele contrariava-me. Não está em casa, não pode estar bem. Mas ele não consegue voltar dizia eu, se ele conseguisse ele voltava. Incompreensão, foi tudo o que vi naqueles olhinhos pequeninos.

E facas, a torcerem-se no meu peito ao mesmo tempo que tentava manter o discurso coerente para ele. E a controlar as lágrimas para ele não ver, porque cada vez que ele fala do avô já me diz que sabe que eu fico triste...

Medo deste ano. Medo que alguma coisa lhe aconteça a ele e que o meu mundo acabe. E a morte que não me larga, a ideia da morte, a sensação da morte, o fosso entre isto aqui e agora e o ultimo dia em que vi o meu pai. E a vontade suprema de ter fé e acreditar que o vou voltar a ver, um dia, algum dia quando eu própria morrer. E a consciencia total que a fé não é racional e que por mais que eu queira racionalmente acreditar, porque acreditar é mais fácil, só ouço vazio do outro lado.

A fé não pode ser racional porque senão não é fé, e não se pode pedir para ela aparece só porque tudo se tornaria muito mais fácil de suportar. Quão feliz eu era se soubesse que o iria ver outra vez, nem que fosse daqui a 60 anos! As conversas que iríamos ter, tudo o que guardo ainda inconscientemente para lhe contar numa qualquer chamada de video, daquelas que fazíamos só porque sim durante o dia. Mas quem acredita, sente nos ossos, e eu há muito tempo que deixei de acreditar, que deixei até de acreditar que um dia poderei voltar a acreditar. E por isso só há silencio do outro lado. Nada. Vazio.

Tudo o que há está na minha cabeça, nas minhas memorias, nos meus sonhos. E se eu um dia me esquecer? E se quando esta dor passar, eu me esquecer da mão dele na minha, do abraço, da barriga onde eu apoiava a cabeça quando víamos filmes no sofá? Quero que pare de doer, quero não me esquecer, quero acreditar que se pode ter um sem ter o outro, apesar da experiência me dizer que não pode ser assim.

Quero salvar este ano com amor, projectos, viagens. Ainda faltam 5 meses, recuso-me a dar este ano por perdido. Não sei quantos mais vou ter.


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Sonhos


Aparecem de inesperado e tornam a nossa vida tão melhor.

De um momento para outro pensamos em quão bom seria uma casa fora da cidade. Com um jardim, espaço para brincar, uma biblioteca e quem sabe até um cão.

Pode até não dar em nada, mas enquanto sonhamos somos muito felizes.

Há apenas uma pessoa com quem eu gostaria de partilhar isto. Da qual eu quereria ouvir opinião e explicar os meus receios de uma nova mudança. Mas essa pessoa já não está cá. Se este sonho se realizar, vai ser a primeira grande mudança sem o meu pai comigo. A minha prova de fogo que eu consigo andar para a frente sem ele, sem a opinião dele, sem as nossas discussões infindáveis sobre prós e contras.

Tento imaginar esta conversa na minha cabeça. O que é que ele me ia dizer, que argumentos iria usar...

Uma parte de mim quer ficar teimosamente imutável sem ele. Como por pirraça, eu disse-te que não conseguia viver sem ti!! Mas a outra parte sabe que, apesar de toda esta dor, também há felicidade por ai à espreita. Há toda uma vida que continua, que se renova, que não pára e que nem eu quero que pare. Mas seguir em frente com esta dor é como andar permanentemente com os pés em cima de vidros.

Queria tanto que estivesses aqui.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Journal

Escrever faz parte de mim. Sempre fez.
E isso sempre influenciou o meu "soft spot" por cadernos, canetas e tudo o que seja relacionado com escrita.
Tenho mais cadernos do que aqueles que vou usar no próximo ano e só me apetece comprar mais e mais.
Por agora vou simplemente voltar a escrever.

Depois de um mês e meio fora de casa, está na hora de voltar à rotina, aos projectos, à vida que pausei para voltar a Portugal.
Foi quase demasiado tempo e ao mesmo tempo, tempo nenhum.
Foi terapêutico da maneira como só Lisboa sabe ser. Voltar à minha língua, aos meus costumes, e a facilidade da vida como sempre foi. Voltar é tão fácil, fácil demais.
Voltar a casa sem o meu pai. Adaptar-me ao ambiente, às paredes, ao sofá, sem ele, custou-me muito. O buraco (que de si já não fecha), abriu ainda mais, não deixando espaço para mais nada, nem para a comida. Durante dias senti esta falta fisicamente de tal maneira que nem comer conseguia. 
E depois o tempo fez o que sabe fazer melhor, ajudou-me a aprender a contornar o buraco em vez de constantemente olhar o abismo. O tempo ajudou-nos a todos lá em casa (não só a mim), a lidar com a ausência, a aprender a viver com ela e a não estar constantemente a pensar nela. Achei a certa altura que não iria ser possível, a cada movimento via o meu pai, a cada quadro ou som. E depois habituei-me a que ele já não estava em casa. 
Explicar ao M. foi mais difícil e não sei se ele percebeu. Quando baixei os braços e desisti de lhe dizer somente a verdade, explicando-lhe sucintamente o conceito de morte, ele não acreditou na ideia de o avô estar no céu. E portanto voltamos ao mesmo sitio e daqui vamos gerindo com o tempo.
Foi bom saber que o quentinho de casa não desapareceu com o meu pai. Tive tempo de qualidade com as minhas irmãs, conversamos, pintamos as unhas e vimos filmes adolescentes, tal como fazíamos antes. À um conforto muito grande nas coisas imutáveis. Ou pelo menos imutáveis por agora.

Ao mesmo tempo tive saudades de casa. Do conforto das decisões tomadas somente a dois e não pela família inteira. Do fresco da minha casa (em contraposto do calor que fez em Portugal), da rotina.
Adoro a rotina. Nunca pensar sentir tanta falta dela. Ter a vida controlada, agendada, planeada. Ter planos, objectivos e metas.
Portugal sabe a férias, mesmo quando se trabalha de casa. E em férias é relax, só se faz o que se quer. Mas não se cumpre nada, não se chega a lugar nenhum, e é esse mesmo o propósito. Mas eu gosto irremediavelmente de estar sempre a lutar por alguma coisa e por isso estou feliz de voltar.

Este agri-doce dá cor à vida.