terça-feira, 12 de maio de 2020

Criatividade

- Podia-te dizer que tudo se tinha passado rápido demais, que tinha sido um impulso, um desejo  passageiro, mas a verdade não é essa, nunca fui pessoa de impulsos, sempre tive a minha lição mais do que estudada. Não foram faiscas e relâmpagos, construiu-se lenta, vagarosamente, um dia depois do outro, sem se apressar. Conversa após conversa, um estar só porque sim, um olhar seguido do outro, obscuro sob a capa de normalidade que mostrávamos perante  aquele mundo sempre tão atento. Não havia transgressão, não havia pecado - importantíssimo para quem nisso acredita -, estava tudo correcto e esteve, até deixar de o estar.
Um dia, mentiria-te se dissesse malfadado, sob outras diversas mascaras que pomos para fingir que não somos a pessoa que tanto queremos ser, a oportunidade apareceu, os astros alinharam-se e empurraram-nos para  uma situação da qual não quisemos sair.
As questões que estiveram presentes durante todos aqueles meses de aparente inocência, lá continuavam, a minha educação nortenha recta aborrecia-me muito mais do que o discurso do "pecado" que as freiras que viviam comigo permanentemente me davam, mas tinha acontecido e não podia, e sinceramente nem eu queria, que fosse apagado ou esquecido.
Por isso chegou o dia dos pratos limpos, da conversa, o dia em que tinha planeado dizer-lhe que não éramos estas pessoas, que tínhamos de esperar por um futuro que podia ou não acontecer, atirar os dados ao ar e aguardar o resultado. Nesse dia ia-lhe dizer que não éramos essas pessoas, que havia demasiado em jogo, que a linha que não podia ser cruzada era esta, estava já aqui. Queria alegar que uma relação que começa assim não podia acabar bem, que não era justo para a beleza do que sentíamos um pelo outro e que acima de tudo, não podia fazer sentido neste momento. Como alternativa, a partir desse dia, ficaríamos na vida um do outro como conhecidos, encontrar-nos-íamos casualmente na rua e viveríamos separados por esta aparente normalidade. Tinha tudo ensaiado, pronto debaixo da língua, e estava em paz com essa decisão, muito mais em paz do que com as suas alternativas: ser a outra por tempo  indeterminado ou virar a minha vida toda do avesso e fugir com ele, um marido, pai que iria abandonar uma filha de meses. E com isto em mente, sentei-me naquele cruzamento e esperei que ele aparecesse.

- E depois avó, o que é que aconteceu?

- Depois ele apareceu. Saiu do carro e sem dizer uma palavra, beijou-me. Não consegui dizer nada do que tinha preparado, nem uma palavra. Entrei no carro e fugimos. E tudo aquilo que eu sabia que ia acontecer, aconteceu. Demorou anos, mas destruímos toda a beleza do que sentíamos um pelo outro com a pressão do que tínhamos deixado para trás. Foi tudo demasiado grave, sério e sofrido para todos os intervenientes da historia, para algo bonito poder sobreviver. Fizemos dos nossos filhos danos colaterais de um amor que devia ter sido evitado. E pior, no final percebi que o teu avô era essa pessoa, sempre foi, eu é que não quis ver porque assim que o visse teria de assumir que eu também o era.

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